sexta-feira, abril 19, 2024
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O suicídio nas redes sociais

Não lembro exatamente o ano. Devia ser final dos anos 90 e não tínhamos sites de notícia nem redes sociais. Eu ainda era editor da revista Empreendedor e a redação ficava no nono andar do bloco C do Ceisa Center, um dos mais antigos centros executivos de Florianópolis, bem no centro da cidade. Da janela da minha sala, a vista dava para a avenida Osmar Cunha e para a rua Trajano. Vi passeatas, pequenos acidentes de trânsito, mas jamais pensei que fosse ver o que vi no início da tarde: um suicídio.

Ouvi um estrondo. Levantei a cabeça e vi um jovem se atirando pela janela do corredor. O estrondo foi ele quebrando o vidro da janela com um martelo. Cena chocante, que logo chamou a atenção não só na redação da revista, mas de todo o Ceisa Center e seus três blocos.

O corpo caiu sobre o telhado de um posto de gasolina que funcionava ali na esquina. Os bombeiros tentaram, mas não conseguiram salvar o jovem. Havia muita comoção. Colegas emocionados diante de uma cena tão trágica. Mas o episódio se encerrou ali, assim que o corpo foi retirado do telhado. E voltamos todos para nossa rotina.

Na TV, no rádio ou nos jornais do dia seguinte, nenhuma nota a respeito, como é praxe dos veículos de comunicação: suicídio não é notícia. Mas você deve imaginar como seria se tivesse ocorrido nos dias de hoje? Os veículos continuariam seguindo a convenção de não publicar, mas nas redes sociais…

Bem, nas redes sociais não há filtro nem limites. Foi o que se viu ontem, mais uma vez, entre usuários do Twitter aqui de Florianópolis. Uma moça morreu em um shopping da cidade e foi um festival comentários deprimentes no Twitter. De dar nojo. Foto do corpo estendido no chão, julgamentos de caráter, conclusões antecipadas sobre o fato e suas motivações e até piadas com kkkkk inclusive. Só faltou selfie ao lado do corpo fazendo joinha ou biquinho (o que não seria de se espantar). E se bobear ainda veremos críticas e pedidos cobrando a falta da “notícia” nos veículos de comunicação.

Se por um lado, a gente comemora o poder que as redes sociais deram para o cidadão que fazem dele meio/produtor de conteúdo, por outro, falta para muitos a noção exata do que esse poder representa. Sabe o conselho recebido do tio pelo Homem-Aranha? Pois é.

Como escrevi no Facebook, numa troca de mensagens com os colegas jornalista Cesar Valente e Luís Meneghim, rede social é conversa de janela, de portão, de recreio, enfim, sem filtro. É a parte que o povo não entendeu direito, essa de também ser “produtor de informação”. Tem que ter o mínimo de noção do quê e como publicar. Nunca terão.

Uma pena. Esse comportamento mórbido joga contra o real poder das redes sociais e todo o seu potencial como ferramenta de produção de conteúdo e de interatividade. E aumenta a responsabilidade de jornalistas e veículos que apostam no conteúdo cidadão e correm o risco de jogar para a torcida na base do “tá todo mundo falando disso nas redes sociais”. Respire, conte até 10 e reflita para não cair nessa armadilha.

Não vejo muitos caminhos para uma mudança de comportamento. Até porque também não vejo abertura para que usuários de redes sociais assimilem boas práticas como as que são propostas para jornalistas pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria). A entidade elaborou um guia com orientações sobre como abordar o suicídio na imprensa.

Faça o download

Fica a sugestão para que entidades como a ABP também pensem em incentivar uma nova prática nas redes sociais. Não custa tentar. E torço que quando levantar a cabeça e olhar pela janela, você, usuário sem noção e irresponsável de rede social, veja sempre uma imagem inspiradora e jamais a cena que vi no Ceisa.

Alexandre Gonçalveshttp://www.primeirodigital.com.br/alexandregoncalves
Jornalista, especializado em produção e gestão de conteúdo digital (portais, sites, blogs, e-books, redes sociais e e-mails) e na criação e coordenação de produtos digitais, atuando no Jornalismo Digital e no Marketing de Conteúdo.
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11 COMMENTS

  1. Muito triste! Esta menina trabalhou comigo, uma menina muito sofrida. Tinha depressão a muito tempo, mas apesar dos problemas era uma menina alegre. Perdeu o pai e a mãe esta internada no Lar de Zulma. Tadinha não tinha nenhuma estrutura familiar. Sempre contava só com os amigos e companheiros. Me chocou muito ver as fotos que postaram, eu não precisava ter visto tamanho absurdo. Tem um ditado que diz: se você não pode ajudar, não atrapalhe. Que Deus te acolha de braços abertos.

  2. Faz algumas semanas houve o caso de uma mulher que se atirou de um prédio aqui na minha cidade, Balneário Camboriú. Alguém filmou e em seguida jogou nas redes sociais. Em poucos instantes já estava pipocando o vídeo em grupos do Whatsapp e compartilhamentos no Facebook. A questão geral foi justamente essa: A internet dividida entre os indignados pelo fato de alguém ter se preocupado em filmar ao invés de prestar ajuda e outros fazendo piadas, ou dando falsas lições de moral supondo os motivos do por que isso ocorreu (drogas, depressão, etc.)

    A verdade é que nada mais é tão instigante quanto a própria tragédia humana, algo que não é engraçado e em nada agrega ao crescimento do indivíduo em qualquer área. Talvez esse comportamento poderia ser mais profundamente estudado pela ABP.

  3. Parabéns Alexandre! Li sua matéria responsável e falei para meu filho que trouxe para mim a informação toda distorcida, nos comentários de intervalo de aula. Falta muita responsabilidade deste povo., principalmente da nossa juventude. Que quer ser portador de primeira mão de toda a informação, seja ela boa ou ruim. Principalmente sem filtrar.
    Abraço.

  4. Bom dia…cheguei a ler sobre a moça.publicar noticia acho certo tipo aconteceu tal coisa bla bla bla mas tira aproveito ou mesmo debocha nao acho certo vamos respeitar e foram o que inventan ne

  5. Parabéns pelo artigo.
    Inclusive ontem, conversando com meu filho que estuda no primeiro ano do Ensino Médio, acabei descobrindo que dentre os jovens esta prática de envio de vídeos e fotos é mais comum que parece.
    Ele me contou de alguns fatos que ocorreram aqui na capital que eu, jornalista, nem por foto ou por texto fiquei sabendo, coisas escabrosas e tudo enviado pelo nosso amigo whatsapp.
    Deve-se realmente filtrar muito a informação no que se refere ao que informar ou não, mas a sociedade está entrando ou melhor, já está, em uma era de insensatez tão absurda que não consigo imaginar como vai ficar daqui para frente.

  6. Alexandre, parabéns pelo artigo.
    Em poucos minutos, após o trágico acontecimento do shopping, o que mais me surpreendeu foi a enxurrada de juízo de valor que orbitou o caso.

  7. Parabéns, Alexandre. Também fiquei chocada com o que li nas redes sociais. Quanta insensibilidade.

  8. Alexandre, perfeito o teu artigo sobre o papel da imprensa e os temas polêmicos que cercam as redes sociais. Uma aula sobre as boas práticas do jornalismo.

    • Valeu amigo pelo comentário, pois foram varias informações erradas na rede social sobre a pessoas que estava lá caída no chão , como idade, o porque, e ate dizendo e mostrando um outro suicida de homem dizendo que era o marido dela. Temos que ir atraz da informação para não passar nada errado.

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